Decidimos ficar mais uma noite em Tóquio antes de visitar minha irmã em Nagoia, compramos uma passagem de ônibus e no dia seguinte saímos com antecedência.
Mas não encontrávamos a rodoviária.
Era nossa primeira vez em Tóquio e quem vive em grandes cidades sabe o quanto é fácil se perder mesmo morando no local muitos anos.
O tempo estava mudando, ficando escuro e o céu carregado, a temperatura começou a cair lentamente, sinais que o tufão estava cada vez mais perto. As pessoas que víamos não mostravam qualquer senso de urgência ou apreensão, a vida continuava como se nada houvesse.
E andávamos. Muito, ao menos na percepção de dois turistas perdidos. Paramos em um hotel e pedimos informação a um senhor que estava na porta, ele fez um gesto que esperássemos ali e saiu. O vento aumentou, começamos a ficar com fome e cansados.
O senhor do hotel em seu uniforme impecável voltou com um papel na mão. Era um mapa impresso com as direções que necessitávamos, agradecemos muito e saímos.
Minha esposa caiu. Deve ter pisado em falso ou tropeçado. Seguimos a rota determinada pelo mapa, chegamos a um prédio baixo que não parecia uma rodoviária, subimos ao segundo andar, havia um papel colado na porta escrito em jáponês, entramos.
Sentamos por um segundo, deixei as malas com ela e fui cuidar das passagens no guichê.
Não havia ônibus.
O serviço tinha sido cancelado por causa do tufão, só que não sabíamos. Era isto que estava escrito no papel colado na porta.
O senhor do guichê falava somente jáponês, escrevia as frases no computador, traduzia imediatamente e me mostrava.
Conviver com os japoneses te ensina muito, entre outras coisas se aprende a ser estoico, a não reclamar da sorte que atinge a todos, a ser pragmático e encontrar logo soluções para seu problema, reclamar não é uma delas.
Não tínhamos mais lugar para ficar em Tóquio, ficar também acrescentaria mais despesas ao nosso orçamento, não havia ninguém para nos ajudar ali, minha família muito distante e afinal a decisão de ficar tinha sido nossa, poderíamos ter ido na noite anterior com minha mãe e irmã que tinha vindo nos visitar.
Perguntei o que fazer e ele escreveu de novo nos indicando andar até a estação de Shinjiku que era perto e tentar tomar o Shinkansen, o trem bala.
Agradeci, na rua começava a chover, o vento aumentou um pouco a fome e a sede dobraram de tamanho. Compramos um obentô, uma espécie de marmita pronta muito popular e prática.
Andamos.
A estação estava cheia, só tínhamos cartão de crédito. Primeiro alívio, aceitavam cartão, segundo alívio os trens estavam funcionando e havia lugar disponível.
O trem bala saia de outra estação, tínhamos quarenta minutos para chegar lá por uma rota que não conhecíamos.
Quem já usou trens no Japão sabe que na mesma plataforma passam várias linhas que vão a lugares completamente diferentes, se você pegar o trem errado vai ter problemas e nós não podíamos pegar o trem errado.
Conseguimos chegar estação central, dez minutos antes do horário.
A estação central estava muito lotada, vimos pessoas se chocando e caindo ao chão, gente andando com pressa para todo lado, estávamos embaixo das plataformas, subimos a escada carregando as malas que nessa altura estavam muito mais pesadas do que antes.
Entramos no trem, eternamente pontual, meticulosamente limpo e seguro.
Nos sentamos ainda não acreditando que tínhamos conseguido.
Passou uma garota vendendo comida e bebida, pedimos água e um café, comemos nossos obentôs, o trem já estava a caminho e chacoalhava além do comum, trens bala japoneses são estáveis. Era o tufão.
Um aviso surgiu numa tela na frente do vagão. Havíamos pego o último trem. Dali em diante até a passagem do tufão todo o serviço de trens estava suspenso.
Há várias maneiras de ir de Tóquio à Nagoia. Poderíamos ter ido brigando um com o outro, reclamando do nosso azar, da nossa estupidez e falta de planejamento, da nossa saudade de nossa pátria onde os pássaros que lá gorjeiam não gorjeiam como cá num ufanismo tosco e idealizado, prometendo nunca mais voltar nesse lugar com essas pessoas frias e indiferentes, reclamar da fome e da comida, do frio, do vento, de tudo.
Nada disso aconteceu.
Vai-se de um lugar a outro como se vai na vida, pode-se reclamar de tudo e todos, lamentando nosso azar e nos pondo de vítimas, eternos sofredores desamparados e chorar pelos cantos nossa infelicidade e dor eternas, nosso desamparo e solidão, a indiferença das pessoas e da natureza nos agredindo em tudo o que fazemos ou pode-se encarar as situações com estoicismo e praticidade, buscando soluções que resolvam ou ao menos aliviem nossa sorte, sem reclamar e sem sofrer além do necessário e inevitável.
Não digo que não se pode reclamar nunca, nem de verdade nos sentirmos cansados da luta e batidos pelos azares da vida devíamos rir e cantar. Isto seria negar a realidade e é tão doentio quanto se vitimizar.
O estoicismo é parente muito próximo da dignidade pessoal que devemos ter e exercitar ao mesmo tempo usar de um otimismo saudável e realista sempre.
Atitudes assim nos ajudam a levar os fardos da vida de uma maneira mais leve, sofrer é inevitável e a maioria do que acontece em nossas vidas está fora do nosso controle, por mais mentiras que contemos a nós mesmos nos dizendo que controlamos tudo.
Chegamos a Nagoia depois de cairmos no sono no trem que chacoalhava mais que o normal. Chovia bastante.
Pegamos um outro trem menor que nos levou até onde minha irmã mora. Já era noite.
Depois que chegamos a casa dela, instalados, de olho na TV acompanhando as noticias que mostravam os trens parados, as pessoas procurando lugar para passar a noite em Tóquio e Quioto, sem pressa, sem pânico nem lamentações e o tufão que afinal passou mais longe que o previsto, já tendo jantado e confortáveis, chamei meu sobrinho, colocamos botas e capas de chuva, uma lanterna e um radio de comunicação só para garantir.
Fomos andar sob o taifú.